O fundo da bateia

“...em 1818, as Casas da Moeda do Rio de Janeiro
e de Minas Gerais cunharam uma das moedas 
mais intrigantes da história da numismática mundial ...”


O Sistema Monetário Colonial do Brasil mantinha uma clássica ordem de valores dobrados, baseados nas dezenas (5, 10, 20, 40, 80, 160, 320 e 640 réis), o que em grande parte minimizava a problemática do troco. Na província de Minas Gerais, entretanto, no início da segunda década do século XIX, uma particular dificuldade em gerar o troco afetou diretamente os interesses da Metrópole, exigindo medidas drásticas para evitar grandes perdas para a Coroa.

O problema tem origem justamente na comercialização do ouro de aluvião que era retirado, em grande quantidade, naquela região. O ouro em pó, encontrado aflorando à superfície, na forma de pequenos grãos, era garimpado em bateias e comercializado, muitas vezes ainda bruto. O peso do ouro era medido em onças, sendo a oitava a unidade usual. Como o próprio nome sugere, era o equivalente à oitava parte da onça portuguesa, o equivalente a 28,6875 gramas do nosso atual sistema decimal. Dessa forma, a oitava correspondia a 3,5859 gramas.
Existia também o Vintém de Ouro (ou "do ouro", como preferimos chamar) que correspondia a 1/32 da oitava ou seja 0,11205 gramas; tudo dentro do sistema criado por D. Manuel I

As dificuldades surgiam no momento da comercialização do ouro de bateia. Para frações maiores, sempre podia encontrar-se o troco; mas à medida que estas frações decresciam, a falta de troco acabava por beneficiar os faisqueiros, com prejuízo para o Reino.


O problema já existia anteriormente, tendo sido contornado durante o governo de D. José I. A primeira tentativa, no intuíto de facilitar as transações comerciais do ouro em pó, foi realizada durante o governo desse soberano, ao criar a série "J" (600 réis, 300 réis, 150 réis e 75 réis). A oitava de ouro era comercializada à razão de $1200 réis; dessa forma, é simples deduzir que 1/2 oitava de ouro, por exemplo, poderia ser paga com uma moeda de 600 réis de prata, que carregava a inicial "J" deste soberano; 1/4 de oitava, poderia ser pago com uma moeda de 300 réis e 1/8 da oitava com uma moeda de 75 réis da série J.

Todavia, durante a regência de D. João, não atentando para a necessidade dessas moedas (série J), que deveriam circular somente naquela região, foi dada a ordem de carimbar todas as moedas da série criada no governo de D. José, equiparando-as aos valores citados no ínicio. Assim, com uma contramarca de escudo (Carimbo de Escudete), as moedas de 600, 300, 150 e 75 réis passaram a valer, respectivamente, 640, 320, 160 e 80 réis. Se por um lado isso resolvia o problema gerado com a circulação de moedas de mesmo valor intrínseco (mas com nominais diferentes), por outro lado trazia de volta o problema do troco para as transações comerciais com o ouro na região de Minas Gerais.

Como já esclarecido anteriormente, uma oitava de ouro, que correspondia a 1200 réis - que antes se podia pagar com duas moedas de 600 réis, sem necessidade de troco - passou a ser paga, por exemplo, com 2 de 640 réis prevendo o troco que podai ser pago com um cobre de 80 réis; por 1/2 oitava, correspondente a 640 réis, podia ser dada uma de 640 réis, recebendo um troco de 40 réis; 1/4 de oitava, poderia ser pago com 320 réis, recebendo-se um troco de 20 réis, e assim sucessivamente. A problemática criada pelo troco, situação que de certa forma havia sido contornada no governo de D. José I, retorna com força total.

O problema maior começava com a fração 1/16 de oitava que poderia ser paga com uma moeda de 75 réis da série J (D. José I), numa operação simples. Acontece que essa moeda, agora escudetada, não valia mais 75 réis e sim 80 réis. Pagando essa fração do ouro com 80 réis, o faisqueiro deveria receber 5 réis de troco. Todavia, desde 1799, não se cunhavam mais as moedas de V réis de cobre. As últimas haviam sido cunhadas, nesta data, em Lisboa e em pequena quantidade. Com o Alvará de 8 de abril de 1809, ordenou-se a carimbagem com a contramarca do escudo, conhecida entre os numismatas como Carimbo de Escudete, a ser aplicada nas moedas anteriores a 1799 (inclusive), duplicando-lhes o valor. Dessa forma, grande parte das moedas de 5 réis, cunhadas em 1786, 1787, 1790 e 1791 passaram a valer 10 réis*, antes mesmo de serem retiradas de circulação.

Este ainda não era o maior problema. Segundo o historiador Rocha Pombo, o mais normal era se comercializar o metal do fundo de uma bateia, ao final de um dia de trabalho, e medido em vinténs. Assim, se a oitava de ouro correspondia a 1200 réis, então a fração 1/16 da oitava, seria o equivalente a 75 réis e, consequentemente, 1/32 da oitava iguais a 37,5 réis. Como não existia mais a moeda de V réis para o troco (o pagamento era efetuado com a moeda de 80 réis, por exemplo) e, muito menos a possibilidade de se dar um troco de 2,5 réis, essa pequena margem era deixada aos faisqueiros (faiscadores), que não podiam dar troco, pela inexistência de moedas iguais ou menores que cinco réis, o que representava uma perda de 6,67% no momento da compra do ouro. Multiplicado por milhares de operações, realizadas mensalmente, o montante representava uma perda de muitas onças para o Real Erário.


A SOLUÇÃO ADOTADA PELA COROA

É lógico que a melhor solução para resolver o problema seria imprimir letras ou bilhetes, correspondentes a estas frações, como o montante resgatável nas Juntas de Fazenda ou em outras repartições fazendárias, por determinação da Coroa. Isso se a ação dos falsários fosse quase nehuma ou combatida com eficácia, o que não acontecia haja vista as dimensões continentais da Colônia, um território vasto onde se transgredir longe da vigilância pública era relativamente simples.
Foi assim que, alheios ao quase insolúvel problema da falsificação do cobre que já se havia espalhado por praticamente todo território, a Coroa facilitou ainda mais a ação dos delinquentes, emitindo letras e bilhetes na intenção de facilitar as transações comerciais e, particularmente, a permuta do ouro em pó na região das Minas Gerais. Tudo tem início em 1808 com a chegada da Família Real ao Brasil.


LETRAS PARA FACILITAR AS TRANSAÇÕES COMERCIAIS NAS MINAS GERAIS

Criadas pelo Alvará de 1 de Setembro de 1808, impressas e pagáveis à vista, passadas pelos escrivães das Intendências, assinadas pelos intendentes e tesoureiros, deveriam ser recebidas como moeda corrente na respectiva Junta de Fazenda ou noRealErário do Rio de Janeiro.


ALVARÁ DE 1 DE SETEMBRO DE 1808
"...e querendo facilitar as transacções em Paízes tão remotos, assim como os transportes do cabedaes,que de ordinários se fazem com grande dificuldade, e riscos: Sou Servido Ordenar que convindo os Proprietários do ouro, que vier as Cazas de fundição, se lhes dê daquella porção que quizerem, em lugar de barras, Letras impressas e pagar à vista pelas respectivas Juntas de Fazenda, ou no meu Real Erario, que serão passadas pelos Escrivães das Intendências e assinadas pelos Intendentes, e Thesoureiros dellas, as quaes se receberão como moeda corrente em todos so pagamentos, que se houverem de fazer à Minha Real Fazenda.


BILHETES DE PERMUTA DO OURO EM PÓ NA CAPITANIA DAS MINAS GERAIS

Criados pelo Alvará de 12 de Outubro de 1808 e regulamentado em 8 de Novembro do mesmo ano, visava facilitar as transações comerciais do ouro de faisqueira, partindo da menor fração comercializada, o equivalente a 1/32 da oitava que era comercializada, como já vimos, à razão de $1200 réis. Dividindo esse valor (1200 réis) por 32, obtém-se 37,5 réis, a menor unidade dessas emissões em papel.

ALVARÁ DE 12 DE OUTUBRO DE 1808
"...O troco do ouro em pó de faisqueira será feito não somente com a moeda, que para esse fim fui servido destinar (Pezos hespanhões), mas também com bilhetes impressos, e do valor de hum, dous, quatro, oito, doze e dezasseis Vintens de Ouro, na forma do Regulamento Provisional, que com esta baixa..."

REGULAMENTO PROVISIONAL DE 8 DE OUTUBRO DE 1808
"...A Junta da Fazenda da Capitania de Minas Geraes distribuirá os bilhetes impressos que recebe do RealErário a fim de serem assignados com appellidos do Intendente, e Thesoureiro de cada uma das Casas de Fundição..."
"... Os bilhetes sobreditos serão recebidos em todos os pagamentos da Real Fazenda como moeda corrente..." (moeda fiduciária...curso legal forçado).

Como já esclarecido a ação dos contrafatores era sentida em toda Colônia. A esse ponto o bom senso mandaria (já que haviam decidido emitir estes bilhetes) imprimir um ou dois valores (no máximo) e que estes fosse um vintém (37,5 réis) e dois vinténs de ouro (75 réis). As transações superiores (150, 300, 450 réis, etc), sendo múltiplos desses dois valores, seriam realizadas pela quantidade deles, não havendo a necessidade da impressão de bilhetes de 300 réis, por exemplo, e muito menos de 450 réis. Mas foi justamente isso que fez a Coroa: baseando-se no sistema de medição da época, criado por D. Manuel I, e não na emissão de valores, ordenou a impressão da primeira emissão destes bilhetes, nos valores 37,5 (1 vintém de ouro), 75 réis (dois vinténs de ouro), 150 réis (4 vinténs de ouro), 300 réis (8 vinténs de ouro), 450 réis (12 vinténs de ouro) e, finalmente, para a alegria dos falsários, 16 vinténs de ouro, um bilhete de 600 réis.

Figura: Bilhete de 37,5 réis para permuta do ouro em pó na região de Minas Gerais, primeira emissão, Alvará de 12 de Outubro de 1808 e Regulamento Provisional de 8 de Novembro de 1808.

Com a Provisão de 9 de Novembro de 1808 foram remetidos à Junta da Fazenda de Minas Geraes bilhetes impressos de 1, 2, 4, 8 e 16 Vinténs do ouro, ou de 37½ , 75, 150, 300, 450 e 600 réis, na importância de 76:452$600, afim de serem distribuídos pelas quatro Casas de fundição e nellas assignados gratuitamente com os appellidos dos seus Intendentes e Thesoureiros, para no mais breve tempo começar o troco do ouro em pó, como ordenava o Alvará. As Casas de fundição foram estabelecidas em Vila Rica, Sabará, Rio das Mortes e Serro Frio.

Não satisfeitos com o problema criado (a facilidade em se falsificar estas emissões), em 3 de Outubro de 1808, outra Provisão determinou que mais bilhetes de 1, 2 e 16 Vinténs fossem remetidos à Junta de Fazenda, num total de 45:187$200


Como se pode deduzir, a falsificação desses bilhetes, impressos em papel comum, foi tão grande que a Coroa ordenou (Aviso de 15 de Junho de 1818) substituir os antigos bilhetes por novos, gravados e litografados. Em 6 de Agosto de 1818 foram expedidas as ordens à Casa da Moeda para abrir chapas de cobre paraservirem à impressão dos bilhetes que seriam enviados às Casas de permuta da Capitania de Minas Gerais. Contudo, o trabalhofoi entregue à responsabilidade do Real Erário, criado recentemente pelo Alvará de 28 de Junho do mesmo ano. O abridor Francisco Antônio da Silva fabricou: 300.000 bilhetes de 37½ réis, 300.000 de 75 réis, 75.000 de 150 réis, 75.000 de 300 réis e 75.000 bilhetes litografados, de 450 réis, num total de Rs. 101:250$000. Para realizá-lo, o abridor Francisco da Silva recebeu a fantástica quantia de Rs. 18:286$195, integralmente liquidada quase 4 anos após o início do trabalho, em 1822
Mesmo assim, com todas as medidas que a Coroa dispunha na época, para combater a falsificação, por volta de 1820, supõe-se que mais da metade desses bilhetes não eram autênticos.


A MOEDA DE 37,5 RÉIS

Numa operação morosa e de grande dificuldade, paralelamente à emissão dos bilhetes litografados, a Coroa resolveu substituir os bilhetes por moedas, mas agora atentos à logica da cunhagem de apenas dois valores, como deveria ter sido feito com a emissão dos bilhetes. Foi assim que as Casas da Moeda do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, em 1818, cunharam uma das moedas mais intrigantes da história da numismática mundial, o Vintém do Ouro (Vintém de Ouro, como é conhecido pela maioria).
Apesar do nome sugerir uma moeda de 20 réis, cunhada em ouro, na verdade tratava-se de moeda de cobre com o valor de 37½ réis, batida no Rio de Janeiro para circular somente em Minas Gerais, suficiente para pagar 0,11205 gramas de ouro.

Também neste ano, a Casa da Moeda de Minas, que estava em funcionamento desde 1810, começou a produzir o Vintém do Ouro, batendo moedas de 1818 a 1821 e de 1823 a 1828. Entre 1818 e 1821, a Casa da Moeda de Minas Gerais fabricou, também, as moedas de 75 réis (2 Vinténs do Ouro). Em 1823, a Casa da Moeda de Goiás cunhou moedas no valor de 75 réis.

*Nota(1): As moedas de V Réis não deveriam ser carimbadas, conforme trecho do Alvará de 18 de abril de 1809:
“... marcadas a ponção com o cunho das Minhas Reaes Armas , corrão em qualquer parte do Estado do Brazil as seguintes moedas de prata , e cobre, com os valores abaixo declarados: a saber: a moeda de cobre chamada antiga, cujo pezo especifico he o duplo do da que se emittio no anno de mil oitocentos e tres, e valia quarenta réis, passará a girar por oitenta réis; semelhantemente a de vinte, por quarenta réis, e a de dez por vinte réis; a moeda de prata de seiscentos réis passará a representar seiscentos e quarenta réis; a de trezentos, trezentos e vinte réis; a de cento e cincoenta, cento e sessenta réis; e a de setenta e cinco, oitenta réis; visto que o valor intrinseco da primeiras he o mesmo que o das segundas, com as quaes igualão no tamanho...”
“E porque a moeda de cinco réis se faz indispensavel para o ajuntamento de pequenas transacções, e deve por esta causa conservar-se na circulação ...”

Todavia, consta do mesmo Alvará:
“Hei por bem Ordenar: que a moeda nova de cobre, denominada de dez réis, passe semelhantemente a ser marcada para ter o valor de cinco réis, e igualar-se com a antiga, correspondente em tamanho, continuando entretanto a receberem-se ambas, como vai declarado a respeito das outras moedas.”
A explicação:
Havia realmente a necessidade de peças de 5 réis para se efetuar o pagamento de pequenas importâncias. A citação relativa às moedas de 5 réis, instruindo a que não fossem carimbadas, realmente consta do Alvará que, todavia, especificava também que fossem marcadas as novas peças de 10 réis, a fim de reduzir seu valor circulatório para cinco réis.
Contudo ficou provado que este último trecho do Alvará não poderia ser executado. Como não havia sido possível obrigar os portadores das moedas novas de 10 réis a concordar com sua redução à metade, deixou de ser efetuada a carimbagem destas moedas, continuando, consequentemente, a circular pelo valor facial.
Entretanto, embora fosse contrário à lei, foi procedida a carimbagem das moedas de 5 réis, para depois circularem também com o valor dobrado, ou seja o de 10 réis. Desse fato resultou que a moeda de 5 réis, cujo valor aquisitivo já era muito reduzido, foi retirada completamente de circulação o que terminou por agravar o problema existente nas transações comerciais do ouro na região das Minas Gerais.

Nota(2): A oitava tratada aqui, corresponde à oitava parte da onça de ouro portuguesa (28,6875 gramas), diferente da atual onça que corresponde a 31,1035 gramas. Sendo assim, dividindo o valor 28,6875 por 8, obtemos o valor da oitava, ou seja: 3,5859 gramas.
As antigas unidades de medida portuguesas foram utilizadas em Portugal, Brasil e em alguns domínios coloniais portugueses até à introdução do sistema métrico. Estas unidades tiveram origem nas unidades de medida romanas, árabes e outras, e evoluíram ao longo dos tempos.
O sistema métrico de unidades foi introduzido em Portugal por Decreto de 13 de Dezembro de 1852 e foi adotado, na prática, pelo Brasil somente em 1872, quando houve a regulamentação da Lei Imperial 1.157, de 1862.
O Decreto de 20 de Junho de 1859 estabeleceu como obrigatório o uso exclusivo do sistema métrico. Este decreto entrou em vigor para as medidas lineares, em Lisboa a 1 de Janeiro de 1860 e nas restantes localidades a 1 de Março do mesmo ano. A obrigatoriedade da utilização das restantes medidas, entrou em vigor, em todo o território nacional, em 1 de Janeiro de 1862.
Quando se começou a projetar a introdução do sistema métrico decimal, no século XIX, as unidades de medida lineares e itinerárias, e bem assim as unidades de peso, tinham já padrões legais únicos em todo o Portugal.
As restantes unidades variavam de região para região, e mesmo de localidade para localidade, embora se situassem na ordem de grandeza dos padrões de Lisboa.
Os valores das unidades foram variando ao longo dos tempos, mas oriundos, essencialmente, daqueles estabelecidos pelo Rei D. Manuel I em 1495.