A família Ferrez

Durante o século XIX, o Brasil experimentou significativas mudanças nas artes plásticas. Um dos principais protagonistas dessa reviravolta na história cultural do país foi a Missão Artística Francesa. Em 26 de março de 1816 desembarcou no porto do Rio de Janeiro um grupo de artistas franceses, liderados por Joachim Lebreton, ex-secretário do Institut de France. A missão era composta pelo pintor Jean Batiste Debret, pelo paisagista Nicolas Taunay e seu irmão, o escultor Auguste Marie Taunay, o arquiteto Grandjean de Montigny e o gravador de medalhas Charles-Simon Pradier. O objetivo era fundar a primeira Academia de Arte no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Na figura ao lado, retrato de Joachim Lebreton, o líder da Missão Francesa.

São conhecidas três versões sobre a origem da Missão: A primeira defende que, por sugestão do conde da Barca, o príncipe regente Dom João requereu ao marquês de Marialva, então representante do governo português na França, a contratação de um grupo de artistas capaz de lançar as bases de uma instituição de ensino em artes visuais na nova capital do Reino. Aconselhado pelo naturalista Alexander von Humboldt, Marialva entra em contato com Lebreton, que se encarrega de formar o grupo. 
Na segunda versão, os integrantes da Missão teriam viajado ao Brasil por iniciativa própria, oferecendo seus serviços à corte portuguesa. 

De formação artística neoclássica e partidários de Napoleão Bonaparte, os artistas se sentiram prejudicados com o retorno dos Bourbon ao poder. Destarte decidiram viajar ao Brasil onde foram acolhidos pelo príncipe D. João, esperançoso de que os missionários pudessem ajudar na renovação artística e cultural do Rio de Janeiro. A versão mais recente fala de um casamento de interesses: o rei, que teria sido receptivo à criação da academia e, da outra parte, Lebreton que no intuito de sair da França, teria oferecido seus serviços ao soberano português, arregimentando artistas dispostos a se refugiar em outro país.

Não foram poucas as dificuldades encontradas pelo grupo para realização da missão. A Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios foi criada por Decreto em 12 de agosto de 1816, prevendo pensão aos artistas da missão, por um período não inferior a seis. A resistência de membros lusitanos do governo à presença francesa, foi umentrave nas negociações e o acordo não chegou a ser concluído. Outros obstáculos teriam sido o lobby desfavorável ao projeto, liderado pelo representante da monarquia francesa em terras brasileiras, o cônsul-geral Maler. O atraso de ordem material e estrutural no qual se encontrava o Rio de Janeiro e o descaso da sociedade por assuntos relativos às artes, também colaoraram para o fracasso da missão. Mesmo com osventos desfavoráveis, a Escola abriu suas portas em 5 de novembro de 1826, passando por dois outros Decretos, o de 12 de outubro de 1820, que instituiu a Real Academia de Desenho, Pintura e Arquitetura Civil, e o de 25 de novembro do mesmo ano, que anunciou a criação de uma escola de ensino artístico com a denominação de Academia e Escola Real.

Durante o longo tempo de espera, os franceses seguiram com as suas atividades. Debret realizou diversas telas para a família real e Grandjean de Montigny foi o responsável pelo edifício da Academia Imperial de Belas Artes e outras obras públicas, a exemplo do prédio da Alfândega (atual Casa França-Brasil). Por ocasião das festas comemorativas da coroação de Dom João VI, em 1818, ambos idealizaram, com Auguste Taunay, a ornamentação da cidade. Debret também se dedicou ao ensino de desenho e pintura num espaço alugado, enquanto realizava as aquarelas que marcariam sua notável fase brasileira. No Rio de Janeiro, Nicolas Taunay, encantado com a natureza tropical, firmou-se como pintor de paisagem.

A situação se complicou com a morte de Lebreton em 1819, e a nomeação, em 1820 do pintor português Henrique José da Silva, hostil à presença dos franceses no Brasil, para a direção da Academia Real. Nicolas Taunay decidiu retornar à França em 1821, sendo substituído pelo filho Félix Taunay. Os outros artistas tentaram adaptar-se à realidade de uma Academia distante de seus planos originais. Com a chegada de reforços franceses, os irmãos Marc e Zepherin Ferrez, respectivamente escultor e gravador, os remanescentes da Missão procuraram resistir às adversidades criadas pelo novo diretor. Debret não suportou a pressão por muito tempo e terminou retornando à França em 1831.

Historicamente, além da importância da Missão Artística Francesa como fundadora do ensino formal das artes no Brasil, pode-se dizer que durante o tempo em que os artistas permaneceram no país, contribuiram a fixar a imagem do artista como homem livre, numa sociedade de cunho burguês. Criaram um novo conceito de arte como originária de ação cultural leiga, fazendo cair a figura do artista-artesão, antes submetido à Igreja e seus temas, posição predominante nos séculos anteriores.

Zeferino Ferrez (ou Zéphyrin Ferrez, ou Zepherin Ferrez) - Nasceu em 31 de julho de 1797, na cidade de Saint Laurent, na França e faleceu no Rio de Janeiro, em 22 de julho de 1851. Foi um medalhista, escultor, gravurista e professor franco-brasileiro, e um integrante tardio da Missão Artística Francesa. 

Ingressou na Escola Nacional de Belas Artes da França em 1810, onde estudou escultura sob orientação de Philippe-Laurent Roland, e gravura com Pierre Nicolas Beauvallet. Em 1816 partiu para o Brasil com Marc Ferrez, seu irmão, juntando-se aos demais franceses que formavam a Missão Artística no Rio de Janeiro.

Participou dos trabalhos de decoração da cidade, na chegada da futura imperatriz Dona Leopoldina, e realizou diversas encomendas da realeza. Foi o primeiro professor oficial de gravura de medalhas, realizando, além de trabalhos no âmbito de sua especialidade, baixos-relevos da fachada do antigo Palácio das Belas Artes, hoje Ministério da Fazenda. O baixo-relevo alegórico, do tímpano do frontão, representando Phebo em seu carro luminoso e os dois gênios alados que ladeiam a porta de ingresso, são trabalhos seus. No futuro, Bethencourt da Silva aproveitaria o ornato nas cornucópias decorativas e simbólicas da abundância criados por Ferrez, usando-o no frontispício do edifício da Associação Comercial, na Rua Primeiro de Março. O mesmo, amis tarde, seria feito por Oliveira Passos, na fachada posterior do Teatro Municipal.
Zeferino Ferrez gravou as medalhas comemorativas da aclamação de D. João VI, a rara Peça da Coroação de D. Pedro I, e a medalha comemorativa do matrimônio entre D. Pedro II e Dona Teresa Cristina.

Em 1826 realizou, com seu irmão Marc Ferrez, uma série de baixos-relevos para a fachada do edifício da Academia Imperial, projetado por Grandjean de Montigny. Nas décadas seguintes assumiu a cátedra de gravura de medalhas na AIBA (Academia Imperial de Belas Artes). Foi condecorado com a Ordem da Rosa no grau de Cavaleiro, e participou das exposições gerais da Academia. Zeferino Ferrez era o pai do fotógrafo Marc Ferrez, homônimo de seu irmão.

A peça da coroação

Gravadores: Zeferino Ferrez (anv.) e Tomé Joaquim da Silva Veiga (rev.). Moeda Nacional à razão de 1$600 a oitava. Apesar dos 64 exemplares terem sido assinados por Zeferino Ferrez, apenas o anverso da moeda é de sua autoria; o reverso é atribuído a Tomé Joaquim da Silva Veiga.
Para comemorar a ascensão de D. Pedro ao trono imperial, cunhou-se a moeda de ouro de 6.400 réis, conhecida como Peça da Coroação, primeira moeda do Brasil independente, hoje considerada uma das mais raras e valiosas da numismática brasileira.

Existem algumas teorias (não comprovadas) a respeito dessa cunhagem: A primeira (mais aceita) diz ter sido confeccionada de última hora, para servir de oferenda à igreja na missa realizada na ocasião da sagração e coroação do nosso primeiro imperador.  A segunda diz que as 64 moedas cunhadas seriam oferecidas aos 64 ilustres convidados à cerimônia, como recordação do evento. Uma terceira teoria diz que deveriam cunhar uma quantidade maior de moedas (bem mais de 64 exemplares), destinadas não somente às autoridades presentes, mas também para serem postas em circulação. A cunhagem teria sido interrompida por D.Pedro (pelos motivos expostos a seguir), quando já haviam sido fabricadas 64 moedas. Dessa forma, seja como for, ficou conhecida, desde 1908, no meio numismático, como a Peça da Coroação, onde “peça” é designação portuguesa da época para moedas de ouro com valor de 6$400 réis.

Os 64 exemplares iniciais, assinados pelo gravador Zeferino Ferrez e fabricados pela Casa da Moeda do Rio de Janeiro, não chegaram a cumprir seu objetivo primário; aparentemente, a cunhagem foi suspensa por D. Pedro I. Ao que tudo indica, não agradou ao soberano a sua imagem com busto nu, à semelhança daquela usada no mundo romano antigo como eram retratados os imperadores nas antigas moedas romanas. Além disso, por um equívoco, a coroa encimando o escudo imperial é a real diamantina (ornada com pedras preciosas ou pérolas justapostas, símbolo do poder real), em vez daquela imperial (designativa do título). Aliado a isso, a omissão da palavra CONSTITUTIONALIS e do complemento ET PERPETUUS BRASILIAE DEFENSOR, de acordo com o soberano e seus conselheiros, poderia pressupor um desejo de poder absolutista.

Primeiro sistema monetário do Império do Brasil, 1822R (Casa da Moeda do Rio de Janeiro), catalogado sob os nºs. 538 (Catálogo Santos Leitão) e 0-1240 (Catálogo Kurt Prober), descrita na página 104 do Catálogo Souza Lobo, estampa LXX.

1. Metal: Ouro 916 2/3 milésimos = 22 quilates.

2. Peso: 14,342 gramas (4 oitavas). O peso oficial é de 4 oitavas = 14,342 gramas, sendo toleradas as variações entre 14,1 e 14,6 gramas.

3. Diâmetro: 32,2 mm. Tratando-se de cunhagem efetuada em prensa monetária manual (balancim), poderão aparecer exemplares legítimos com pequenas variações de diâmetro. O diâmetro aproximado da “PEÇA DA COROAÇÃO” é de 32,2 milímetros.

4. Ângulo: O ângulo, do anverso para o reverso é de 350 graus, portanto ligeiramente inclinado.
5. Bordo (espessor): Serrilhado. Escama (serrilha) de segurança, também denominada “escama de peixe” ou “serrilha flor de lis”.

6. Tiragem: 64 unidades - Rs. 409$600 (Quatrocentos e nove mil e seiscentos réis).
Nota: Um total de 16 exemplares dessa moeda, são conhecidos em coleções nacionais e estrangeiras.

Anverso:   No centro do campo, a efígie do Imperador D. Pedro I, de perfil à esquerda (visto de frente), laureada e nua (sem uniforme), encimada ao número da era 1822 e a letra monetária R, sigla da Casa da Moeda do Rio de Janeiro; entre 03 cruzetas assim distribuídas: +1822+R+. Colocada junto à orla, a inscrição (legenda) titular: PETRUS PRIMUS DEI GRATIA BRASILIAE IMPERATOR (Pedro Primeiro pela Graça de Deus Imperador do Brasil) da seguinte forma: PETRUS.I.D.G.BRASILIAE.IMPERATOR. A inscrição Z. FERREZ (Zeferino Ferrez, 1797-1851, gravador e abridor de cunhos da Casa da Moeda do Rio de Janeiro) em baixo relevo, é aposta na parte ovalada do corte do busto imperial. Limitando o campo, junto à orla, um círculo de pequenos traços de ornamentação e segurança, traçados do campo em direção ao bordo da área da espessura.

Reverso: No centro do campo, o escudo das armas imperiais brasileiras, do desenho primitivo, com a coroa real portuguesa (forrada), tendo a inscrição: IN HOC SIGNO VINCES (com este sinal vencerás) dentro do escudo da seguinte forma: IN HOC SIG VIN, legenda abreviada e dividida pelos braços da Cruz de Cristo. (O brasão imperial brasileiro foi posteriormente modificado e já em 1823, foi a coroa real portuguesa substituída pela coroa imperial brasileira e a legenda heráldica IN HOC SIG VIN retirada do centro do escudo de armas). O escudo é colocado entre um ramo de café à esquerda e um ramo de tabaco à direita, apresentando na parte inferior na junção dos dois ramos, o Laço Nacional. Limitando o campo, junto à orla, um círculo de pequenos traços de ornamentação e segurança, traçados do campo em direção ao bordo da área de espessura. Sem valor nominal.

A seguir, exemplar leiloado nos EUA (Heritage); US$ 499,375.00. Ex-coleção RLM.


Marc Ferrez (Irmão de Zeferino - Saint-Laurent, 1788 / Rio de Janeiro, 1850) - Foi um escultor, gravurista e professor franco-brasileiro, integrante da Missão Artística Francesa. Formou-se em arte na École des Beaux-Arts de Paris, onde foi aluno de Philippe-Laurent Roland e Pierre-Nicolas Beauvallet. Após breve passagem por Nova Iorque viajou ao Rio de Janeiro com seu irmão, Zeferino Ferrez, juntando-se à Missão Francesa. Participou dos preparativos da chegada da futura imperatriz Dona Leopoldina, ornamentando a cidade junto com Auguste-Marie Taunay, Debret e Grandjean de Montigny. Novamente nas bodas imperiais realizou os mesmos trabalhos.

Em 1820 foi nomeado professor pensionista substituto na Academia Imperial de Belas Artes, tornando-se catedrático de escultura, sucedendo a Joaquim Alão em 1837. Em 1842 fez a decoração escultórica dos aposentos de Dona Teresa Cristina na fragata Constituição.

Marc Ferrez (Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1843 — Rio de Janeiro, 12 de janeiro de 1923) - Fotógrafo franco-brasileiro, filho de Zeferino Ferrez. Retratou cenas dos períodos do Império e início da República, entre 1865 e 1918. Seu trabalho é um dos mais importantes legados visuais da época.

Retratou o cotidiano brasileiro na segunda metade do século XIX, principalmente da cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil, fotografando a Ilha das Cobras, a floresta da Tijuca, a praia de Botafogo, a Lagoa Rodrigo de Freitas e o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, entre outras.

Juntamente com o fotógrafo alagoano Augusto Malta registrou imagens das transformações decorrentes da reurbanização empreendida pelo prefeito do Rio, Francisco Pereira Passos, no início do século XX.

Era filho de Alexandrine Caroline Chevalier e de Zeferino Ferrez, sendo o mais jovem da família que contava com mais quatro irmãs e um irmão. Ficou órfão dos pais aos sete anos, sendo em seguida mandado para a França, onde estudou até a adolescência e retornou ao Brasil, onde passou a trabalhar na casa Leuzinger, uma papelaria e tipografia que tinha uma seção de fotografia, onde aprendeu as técnicas de sua profissão com o alemão Franz Keller. Aos 21 anos abriu a firma Marc Ferrez & Cia., um estúdio fotográfico que o colocou entre os principais profissionais da corte.

Museu Nacional de Belas Artes, fotografado pro Marc Ferrez

A despeito da produção de retratos ser mais rentável e escolhida pela maioria dos fotógrafos da corte, Marc preferia fotografar as paisagens brasileiras. Preocupava-se também em aprimorar seu ofício, interessando-se pelos estudos da física e química, sempre atento às últimas novidades técnicas, importando equipamentos da Europa.

A única foto existente, que retrata o interior de um navio de escravos - Marc Ferrez

Em 1873, um incêndio destruiu sua loja que também servia de residência. Ferrez viajou então à Europa, para readquirir materiais e equipamentos especializados a fim de continuar a exercer seu ofício. Retornando ao Brasil, em 1875, integrou-se como fotógrafo na Comissão Geológica do Império do Brasil, chefiada pelo canadense Charles Frederick Hartt. Marc Ferrez foi o primeiro a fotografar os índios botocudos, na selva no sul da Bahia. Retornando da expedição, passou a viajar e fotografar as principais cidades brasileiras, ainda assim com destaque para a capital do país. Participou de diversas exposições nacionais e internacionais, sendo premiado com medalhas de ouro na Filadélfia (1876) e em Paris (1878). Aos 41 anos foi ordenado cavaleiro da Ordem da Rosa por D. Pedro II.