Roubaram 100 milhões de Reais do Tesouro Nacional

Os anais da história do Brasil registram que a corrupção não é algo inédito na política do País. Em documentos e jornais antigos encontram-se denúncias de desvios de recursos e outras falcatruas que ocorreram em vários momentos da política nacional. 
O Império foi marcado por escândalos financeiros desde o momento em que Dom João VI se estabeleceu no Rio de Janeiro, em 1808, vindo de Lisboa, passando a sustentar todas as mordomias de uma Corte habituada a caprichos e excessos, escapando da fúria do imperador francês, Napoleão Bonaparte, que intencionava apoderar-se de toda a Europa.

Na época, os quase 700 portugueses, entre fidalgos e aristocratas, que desembarcaram no Brasil após uma extenuante viagem de quase dois meses, foram sustentados pelos cofres públicos até o dia em que Dom João VI resolveu retornar à Metrópole, não sem antes, literalmente, raspar o tacho da sua criatura, o Banco do Brasil, levando consigo até o último tostão dos seus cofres, como se tudo fosse de sua propriedade. Diferentemente (ou quase) dos dias atuais, naquela época nada se apurava e ninguém era punido, isto porque os contemplados com a roubalheira eram pessoas influentes que controlavam (de certa forma, assim como hoje) o Governo Imperial. Essa absurda situação, essa intrínseca e inexplicável relação de roubalheira e impunidade perdura há mais de 200 anos, sendo estranhamente, tolerada pela população.

Mas assim como hoje, também naquela época existiam vozes que se levantavam contra a corrupção que, diga-se de passagem, não terminou com o fim do Império. Muito pelo contrário, se fortaleceu logo nos primeiros anos da República e corroeu ainda mais a combalida economia brasileira, governo após governo, tornando-se, para nossa vergonha, até destaque em manchetes internacionais.

O furto ocorrido em 1836, no Tesouro Nacional, ao que tudo indica, não foi obra de comuns delinquentes. Um levantamento feito pelo padre Ernando Luiz Teixeira de Carvalho, associado do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba (IHGP), aponta a iniciativa de um deputado do Ceará (José Ibiapina), que posteriormente se estabeleceu e morreu na Paraíba, no sentido de frear o assalto que se processava nos cofres públicos, ao denunciar o furto de 497:000$000 (quatrocentos e noventa e sete contso de réis) dos cofres do Tesouro Nacional.


José Ibiapina acusa o Ministro do Carimbo Geral

A coragem, por assim dizer, de José Ibiapina, em denunciar o desvio milionário nos cofres do Tesouro Nacional, foi a mesma quando ele decidiu abandonar a política, ingressar no sacerdócio e peregrinar pelo Nordeste em defesa dos pobres.

Como vimos, segundo apurou o padre Ernando, quase 500 contos de Réis desapareceram dos cofres do Tesouro Nacional, no Rio de Janeiro, na madrugada de 26 de julho de 1836.
Na época, o Brasil vivia o caos. O imperador Dom Pedro I tinha renunciado ao Trono no dia 7 de abril de 1831. Sendo o seu sucessor (Dom Pedro II) ainda menor de idade nessa época, o Brasil passou por um governo regencial que durou até o chamado “golpe da maioridade”, quando o herdeiro do trono foi proclamado maior de idade aos 15 anos, em 1840. Durante todo aquele tempo, D. Pedro II teve como tutor José Bonifácio de Andrada e Silva.

Foi no período regencial que os cerca de 500 Contos de Réis sumiram dos cofres do Tesouro Nacional. A notícia se espalhou como "praga na lavoura" e a Assembléia Geral (hoje Câmara dos Deputados) “foi tomada de assalto pelo assombro”.
“Sumiram exatos 497 contos”, frisou Padre Ernando, acrescentando que o deputado José Antônio Maria Ibiapina, na sessão do dia 16 de agosto, apresentou uma indicação na Comissão de Constituição e Justiça pedindo a imediata destituição do Ministro da Fazenda, Manuel do Nascimento Castro e Silva (ele mesmo, o Ministro do Carimbo Geral), a quem responsabilizou pelo desaparecimento do dinheiro.

“Indico que se dirija uma mensagem ao Trono, com o fim de ser substituído o atual Ministro da Fazenda por quem possa desfazer a crise financeira que ameaça esmagar o Brasil”, dizia a mensagem do deputado Ibiapina. O ministro Manuel do Nascimento Castro e Silva, era um conterrâneo do deputado cearense.

Nota: Para quem não se recorda, Manoel do Nascimento Castro e Silva (cujo retrato se encontra nesta página, ao final deste artigo) foi Ministro da Fazenda e secretário de Estado do segundo Império. Foi ele quem assinou a Lei de 6 de Outubro de 1835, que criou o CARIMBO GERAL, clique aqui para ter acesso ao artigo.


Cem milhões de Reais?

A preço de hoje, os 497 Contos de Réis seriam R$ 101,2 milhões. 

Mas como chegar a essa quantia? 

O historiador e jornalista Laurentino Gomes, autor do livro “1808”, que conta a história do período histórico comandado por Dom João VI, desde a chegada da família real portuguesa até o seu retorno à Metrópole, fez as contas e conversões do dinheiro da época para o dinheiro atual.

Pelas pesquisas e cálculos de Laurentino Gomes, em 1860, com "Um Conto de Réis" se comprava 1 quilo de ouro. Em 2016, 1 grama de ouro vale em torno de R$ 145,50; dessa forma, 1 quilo de ouro custaria R$ 145,5 mil. Ao se fazer a conversão de Réis para o Real (moeda atual) com base no atual preço do ouro, os 497 Contos, desviados no dia 26 de julho de 1835, equivaleriam a R$ 72,3 milhões.

Contudo, numa pesquisa mais aprofundada, chega-se à conclusão que quem possuísse 1 Conto de Réis, naquela época, poderia comprar 1,4 kg de ouro. Dessa forma, os 497 Contos de Réis desviados pelo então Ministro, seriam suficientes para comprar 695,8 quilos de ouro. A preço de hoje, todo o ouro valeria R$ 101.238.900.00. 

Padre Ernando lembra que, na sessão do dia 19 de agosto de 1836, os deputados leram parecer da Comissão de Constituição sobre a indicação de Ibiapina pedindo a queda do ministro.
“A Comissão prestou a devida atenção à indicação do Sr. deputado Ibiapina, que contém a proposta de uma mensagem ao Trono com o fi m de ser substituído o ministro da Fazenda por quem possa desfazer a crise financeira que ameaça o Brasil. A Comissão, conquanto julgue que o meio indicado não se desconforma da índole do sistema representativo e reconheça que ele tem apoio na história parlamentar de nações civilizadas que devem servir de modelo em tais matérias, todavia entende que, na presente conjuntura, não convém adotá-lo”
...diz o parecer da Comissão. E acrescenta:
“Semelhante mensagem não importa mais do que a significação. Isso pode ser feito com auxílio de outros meios, talvez preferíveis por serem indiretos, e já porque estando o negócio do roubo do Tesouro afeto a duas comissões, seria menos prudente prejudicar o juízo das ditas comissões, adotando desde juá proposta mensagem. Portanto, é de parecer que a referida indicação não entre em discussão”.
Seja como for, nada ficou provado contra ministro Manuel do Nascimento Castro e Silva que gozava de imenso prestígio, além de ser muito competente, enérgico e bom diplomata. Provavelmente a acusão feita pelo deputado Ibiapina era movida por divergências políticas ou por uma questão puramente de foro íntimo.


Numeração para combater furtos e a falsificação

A emissão das notas da 1ª estampa do Tesouro Nacional, teve início em 24 de Dezembro de 1835, e depois do incidente do furto no Tesouro - tendo passado todo o serviço a ser feito pela Caixa de Amortização - continuou a correr regularmente, substituindo-se as estampas dos valores à medida em que apareciam as falsas, fato que se deu repetidas vezes, pois o trabalho feito por uma oficina inglesa era evidentemente imperfeito, o que dava lugar a serem imitadas as notas, tão logo eram emitidas.
Não tendo como identificar as notas furtadas do Tesouro, já que não contavam com numeração impressa, não houve como recolher as notas do fruto do crime. Devido a isso, a partir da 2ª estampa, as notas passaram a ser impressas com o seu número de ordem.

Figura: Tesouro Nacional, 50.000 Réis da segunda estampa, com número de ordem, consequência direta do furto de quase 500 contos de Réis, sofrido pelo Tesouro Nacional, em  26 de julho de 1836.


Descaso e negligência

Pela Lei de 30 de Novembro de 1841 foi o Governo autorizado a marcar o prazo dentro do qual terminasse a susbstituição das notas de 50$ a 500$ do padrão circulante, mandada fazer por ocasião do furto no Tesouro Nacional, ficando os possuidores delas no fim do dito prazo, sujeitos às penas do art. 5º da Lei de 6 de Outubro de 1835 (abatimento mensal de 10%).

O furto ocorrido no Tesouro Nacional em Julho de 1836, quando ainda eram numeradas as notas para a assinatura, o aparecimento de notas falsas de diversos valores e o cumprimento da Lei de 6 de Outubro de 1835, fizeram o Governo encomendar notas de outro tipo, que trariam impressa a numeração. Foram essas notas da segunda estampa, todas impressas em papel de cor.

Tão rápido como aconteceu com as cédulas da 1ª estampa, começaram a falsificar as notas da 2ª estampa. A solução encontrada pelo governo foi encomendar nova estampa que, a exemplo do que aconteceu com as duas anteriores, foi também imitada, haja vista o fato de que as chapas sofreram poucas modificações, facilitando o trabalho dos contrafatores. A impressão sempre feita de um lado só, as tintas de má qualidade e o papel de linho que deveria ser um obstáculo à falsificação, mas devido à sua má qualidade, acabou sendo fabricado pelos falsários, facilitaram ainda mais a contrafação das notas.

As alterações nos desenhos e carimbos dos valores (quadrados, ovais ou circulares que se observa nos ângulos das notas), realizadas pelo fabricante Perkins, Bacon & Pectch, em Londres, não chegaram a se constituir em um verdadeiro obstáculo aos falsificadores.

Quando o Ministro da Fazenda fez a encomenda das notas da 2ª estampa, no Aviso de 11 de Novembro de 1836, ocasião em qua passou suas instruções à liga brasileira em Londres, depois de tratar das notas e suas características, disse:
“...ou que a Lei de 6 de Outubro de 1835 tenha que sofrer alteração, quanto ao artigo da circulação das notas indistintamente, em todo o Império, ou que haja de continuar tal qual, é do maior interesse público que elas tenham um sinal característico e privativo da Província em que foram emitidas, e sem o qual não tenham valor algum...para levar pois a efeito este projeto, mister é que em cada uma das Províncias haja uma chapa com a denominação dela, e de desenho tal que não permita fácil imitação. Este sinal característico deve ser impresso no verso das notas e no ato da sua emissão, e para isto necessário é haver um torculo e seus utensílios; e como seja fora de dúvida que tais objetos se arranjarão em Londres da melhor maneira, Vª. Sª., regulando-se pela nota abaixo, mandará aprontar as chapas, torculos, tinta e mais utensílios que julgar necessáriso para a execução da referida operação, tendo em vista quanto às chapas a escolha de desenhos que na dificuldade da contrafação se assemelhem aos que remeto aqui juntos; e sobre os troculos, que a sua construção seja própria para acomodar-se para carga de cavalgadura em que pela maior parte terão de ser transportados para as Províncias do Interior”.
Com efeito, foram enviados os torculos, as chapas e utensílios, mas nunca foram empregados. Os torculos, tendo jazido nos armazéns da Alfândega desde 1837 até 1852, ali se estragaram, assim como as tintas e tudo mais que os acompanhava, já que tendo deixado a pasta da Fazenda o Ministro que tivera a idéia, os seus sucessores não tomaram qualquer providência para que fosse adiante. Nem mesmo tiveram a preocupação em guardar convenientemente o custoso e precioso material que se perdeu.

Da 5ª estampa em diante, começou o governo a recorrer à American Bank Note Company de New York, que forneceu as notas até a 9ª estampa. Alguns valores da 8ª e da 9ª estampas, emitidos nos anos de 1900/1901, são porém, fabricados por Bradbury, Wilkinson & Cia, em Londres.